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Crônicas | A Cidade Nunca Morre #4

Atualizado: 30 de jan. de 2023


O céu estava cinza. Parecia um campo de batalha. Por um momento, me senti embriagada daquele corpo celeste quase sem exposição. Vila Velha é mal assombrada. As sombras me assustavam. Mas como Clarice Lispector, sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. “Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez.” Larguei o livro no sofá e admirei certo silêncio. Moro numa cidade fora do mundo, da qual nunca encontrei um modo de tocar. A costa parecia estar perto, nos dias de Sol. Agora me sinto tão distante e minha cabeça só toca Le Grande Voyage, executando um grande crime de repetição exacerbada de Requin

Chagrin e de amor — só eu e Deus compreendemos. A frieza, o gélido, a sombra característica das nuvens tocavam meu rosto, como uma tentação. As árvores anunciavam algo que estaria por vir. Um horror quase inútil. A chuva está por vir? Considerava Vitória o amor de minha vida. O silêncio visual de ambas revelara outro crime que eu gostava de cometer: queria prender essa cidade para mim. Mas Vila Velha era uma prisão ao ar livre. Como apreender estando em prisão perpétua. Refém de uma carcereira litorânea, com gosto particular de Califórnia — me odiava a ideia de comparação. “Prenderam-me na liberdade” , pensei no trecho que havia acabado de jogar no sofá. Aqui é o primeiro lugar que Deus fez. Vivo com espanto, ouvindo os ventros soprarem alguma coisa sobrenatural aos domingos, quando as famílias se reúnem, as músicas se levantam e eu estava sozinha nessa cela inexplicável. Quando morrer, quero abrir os olhos e dizer: “Vitória e Vila Velha.” Pedi à Deus, enquanto meus pés caminhavam para um destino impreciso: “Depois da morte, não me tire daqui não” . Sinto uma síndrome de Estocolmo inexplicável. Um aperto no peito todos os dias. O que é isso? Amor? Há muitas coisas para se falar além do amor. Apesar de que me encarrego de ter tatuada essa minha tolice de que minha vida está nas ruas, nas minhas crônicas, na imagem que eu criei dessa calorosa cidade. “Aqui não tenho medo. Estou feliz. Parece que estou sendo vista. Deve ser os olhos esquivos de quem me faz refém, quando vou embora” .

Drummond uma vez disse “Há mil deuses pessoais em nichos da cidade”, será que ele previu nas estrelas, o que estava ao seu lado? Não há lugar para inquietações, choros e lamentos. Todo o dia é dia de ser fugitivo. Pegar a Terceira Ponte e fazer o desesperador bate-volta, numa perseguição incessante. “Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar” , Clarice estava em devaneios quando disse isso sobre Brasília, aposto que ela abriu os olhos e viu o Convento, mas também aposto que ela viu as sombras do Mestre Álvaro que caminham pelo chão. Só Deus sabe.




Louize Lima - Apesar de ter nascido na capital, sempre morou em Vila Velha. "Me mudei para Minas Gerais em 2014, e nesse momento percebi que esse grande sentimento de pertencimento à Grande Vitória não era algo fútil. Assim, comecei a escrever o que sentia. Logo, voltei para o ES em meados do ano passado e reuni tudo que eu tinha escrito, durante o período que morei fora e publiquei no Medium — ascendendo o meu amor por crônicas da cidade. Aos 19 anos, ser graduanda em Letras pelo Instituto Federal do Espírito Santo e ter toda essa bagagem profissional, tem colaborado cada vez mais para que eu exerça o amor que sinto pela Grande Vitória".

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